Crônica das Favelas Nacionais

Urbaniza-se? Remove-se? São 200, são 300 as favelas cariocas? O tempo gasto em contá-las, é tempo de outras surgirem. 800 mil favelados ou já passa de 1 milhão? Enquanto se contam, ama-se em barraco e a céu aberto,novos seres se encomendam ou nascem à revelia. Os que mudam, os que somem, os que são mortos a tiros são logo substituídos. Onde haja terreno vago. Onde ainda não se erguem um caixotão de cimento esguio (mas se vai erguer) surgem fumaça de lenha em jantar improvisado... Extingue-se a pau e a fogo? Que fazer com tanta gente brotando do chão, formigas de um formigueiro infinito? Ensinar-lhes paciência, conformidade, renuncia? Cadastrá-los e fichá-los para fins eleitorais? Prometer-lhes a sonhada, mirífica, rósea fortuna distribuição (oh!) de renda? Deixar tudo como está, para ver como é que fica? Em seminários, simpósios, comissões, congressos, cúpulas de alta prosopopéia elaborar a perfeita e divina decisão?... ... Um som de samba interrompe tão sérias indagações e cada favela extinta ou bairro transformada com direito a pagamento de Comlurb, ISS, Renda, outra aparece, larvar, rastejante, insinuante, grimpante, desafiante de gente qual gente: amante, esperante, lancinante... O mandamento da vida explode em riso e ferida.
 De Andrade, Carlos Drummond. 06/10/1979. Crônica das favelas nacionais. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro.